Translater

quinta-feira, 30 de março de 2017

Se o silêncio nos agride



Se o silêncio nos agride ao escutarmos
a malquerença vestida sem palavras,
somos punidos por tenazes
agrilhoadas aos pulsos emudecidos.
Nesta prisão, se voluntária e apática,
a luz, desonesta,
finta-nos pelos apagados buracos da grade
onde não cabe aceso um fio de revolta.
E a nossa indolência, quiçá indigência,
vagueia alucinada, parecendo serena,
pelo ar pesado que nos tolhe os pulmões,
submersos no plágio mental
da nossa carne servil.
Mas, se em nós houver
qualquer virtude plasmada no fígado,
seja na fresca sorte da chuva
ou no quente quebranto do vento,
só quebrando a frescura do silêncio agressor
para então ouvir as palavras despidas.


Jaime Portela


quinta-feira, 23 de março de 2017

Procura-me



Procura-me nas tuas palavras,
nos teus gestos ou no disfarce
da serenidade que te devasta.
Esmagarei o que te assombra.

Descobre-me no teu corpo,
no teu sangue ou no amordaçado recato
que desmaia o teu olhar.
Lamberei as tuas feridas.

Segreda-me os teus medos,
os teus silêncios ou as fraquezas
que estalam desalmadas no teu peito.
Beijarei a tua alma.

Procura-te, do teu vinho serei ébrio
a voar no teu regaço.

Descobre-te, serás a pele que bebo
nas asas do meu abraço.

Jaime Portela



quinta-feira, 16 de março de 2017

A rosa que há em ti



A rosa que há em ti
na dolência dos teus gritos,
quero vê-la abrir-se de orvalho
e de cores carmim revestida,
quero vê-la ao adormecermos
nas nuvens das copas das árvores
que plantámos com ventos de mar,
os mesmos que nos inspiram
numa torrente de igual fulgor.

Essa rosa, franzina no riso,
que de tão sensível
te atinge e subjuga inabalável,
quero tocá-la,
trajada com a fragilidade ilusória
da areia que o mar julga destroçar,
ao nos fundirmos deitados
na fogueira da inquietude
dos incêndios vivos da carne.

A rosa que guardas circunspecta,
que na seiva do teu querer me levanta
e me empurra para ti, é uma flor
que te aumenta, que antes nunca vi.


Autor: Jaime Portela


quinta-feira, 9 de março de 2017

Esta noite [110]


 

Esta noite,
ao caminhar no inventário
que das nossas memórias conservo,
engoli o mar que nos une e separa
na vastidão de um tempo sem tempo
e abracei-te
com o sal que me acende de sol.
Esta noite
levei-te flores roubadas
do jardim que para mim plantaste
e nem uma ficou,
para que novos canteiros se abram
com a chuva salgada pelos beijos
de flores e carícias sedentos.
Esta noite
acreditei que podia voar e fui ver-te
de nuvens despida à espera de mim.
Cedi à saudade,
nutri de certezas
a tua arca de pétalas roxas
e bebi inteira a tristeza
que teima em queimar o teu peito.
Esta noite
derramei orvalhos
na rosa que há no sol do teu corpo.
Esta noite
salgaste os meus lábios,
bebi o sal que ao sol te ofereci.


      Jaime Portela


quinta-feira, 2 de março de 2017

Ainda há tempo [109]


 

Ainda que convencidos
da cumplicidade da pele
que no corpo estala em arroubos da carne,
poderão ser mendigas as mãos
que nas noites de espuma se enlaçam.

Ainda que convencidos
do poema que do afeto se abre,
os verbos poderão vacilar nos seus passos
e cair em jardins destroçados,
soçobrando no lodo de pétalas mirradas.

Mas, mesmo que o sol já tenha almoçado,
ainda há luz, e, enquanto o luar cresce
e nos abraça, ainda há tempo de acariciarmos
os versos da querença buliçosa
na rima do desejo dilatada.

Meu amor,
ainda há tempo de sol, ainda há tempo de luar,
para que a nossa pele se confunda
nas mãos que a fazem vibrar.


      Jaime Portela